A PONTE
(...) Mas como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte
A ponte não é de concreto, não é de ferro
Não é de cimento
A ponte é até onde vai o meu pensamento
A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento
A ponte nem tem que sair do lugar
Aponte pra onde quiser
A ponte é o abraço do braço do mar
Com a mão da maré
A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento (...)
(Lenine e Lula Queiroga)
(...) Mas como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte
A ponte não é de concreto, não é de ferro
Não é de cimento
A ponte é até onde vai o meu pensamento
A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento
A ponte nem tem que sair do lugar
Aponte pra onde quiser
A ponte é o abraço do braço do mar
Com a mão da maré
A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento (...)
(Lenine e Lula Queiroga)
Pois é, muitas e muitas vezes, sem nem percebermos, algum ponto do nosso existir se torna uma ilha. Pensamentos se tornam rígidos e descrentes, sentimentos desesperados ou impotentes. Ficamos isolados da experiência, enxergando a ilha como se ela fosse o mundo todo. E parece realmente não haver saída.
Tomemos o exemplo extremo da anoréxica, que parece estar desligada da sensibilidade para o olhar do outro em seu aspecto determinante, na medida em que tem um conjunto de crenças acerca de peso, alimentação e valor pessoal que se mantém como que independentemente daquilo que se diga a ela (independentemente do olhar do outro). É um ciclo do qual ela não sai. Interpreta o julgamento dos outros sempre a partir do seu prisma particular de desvalorização e de obsessão com o peso. Parece que constrói um modelo de relação consigo própria e com o outro que pode até ter vindo de fora, inicialmente - quando alguém a chamou de gorda, ou quando ficou sabendo do peso da Gisele Bündchen (como foi o caso de uma paciente minha) - mas que logo se desvincula do fator precipitante e parece ganhar vida própria.
No modelo cognitivo-comportamental dos transtornos alimentares encontramos o que parece ser uma das explicações possíveis: o conjunto de crenças (por exemplo, o valor pessoal ligado quase que exclusivamente à forma do corpo; a idéia de que as pessoas magras são fortes e bem sucedidas) é perpetuado por várias tendências disfuncionais de raciocínio. Uma tendência freqüentemente encontrada nas pacientes é a de atentar seletivamente para as informações que confirmam suas crenças, ignorando ou distorcendo as que se contrapõem a elas. Tal tendência é uma das responsáveis pela manutenção do sistema de crenças, uma vez que os dados que poderiam questioná-las são desconsiderados. Esta situação pode ser agravada pelo fato de que, à medida que o transtorno alimentar se desenvolve, a paciente pode se tornar progressivamente isolada do convívio social, exposta apenas aos seus pensamentos disfuncionais.
A anoréxica sofre de uma vergonha proveniente não do olhar real dos outros, mas de um olhar específico e negativo projetado nestes outros por ela mesma. E a anoréxica vive, além da vergonha, a desconfiança. Uma paciente uma vez me disse que, depois de um certo contentamento, sentia ódio, desespero e uma forte cobrança quando, na época inicial de seu emagrecimento, alguém lhe dizia que ela estava magra, ou bonita. Pensava: “ele só pode estar mentindo, será que ninguém vê que não adianta, porque eu vejo que não é verdade. Preciso emagrecer, urgente”. Isso nos faz pensar em uma verdade ainda maior, que ultrapassa a questão da anorexia: não dá pra convencer alguém de que se realmente gosta dele, se a pessoa não se gosta. E é muito difícil romper com esse mecanismo. Talvez seja interessante pensar que, num mundo em que temos que conviver com o outro que nos olha, um sinal de saúde mental seria interpretar o olhar do outro de forma realista. Definitivamente, não é o caso da anoréxica.
Seria, então, o nosso caso?
Apesar de serem padrões de pensamento típicos de pessoas com transtornos alimentares, muitas de nós apresentamos diversos raciocínios distorcidos, que interferem na importância que o corpo toma em nossas vidas. Por exemplo, quantas de nós não acreditamos que nossos problemas se devem à nossa aparência, o que reforça a crença de que uma dieta seria a solução? Imagino o valor que acaba tendo o corpo, já que nele está depositada a razão da infelicidade e frustração! Quantas de nós, muitas vezes, não fazemos interpretações egocêntricas de eventos impessoais, sentindo-nos, por exemplo, olhadas na rua por estarmos gordas ou vigiadas em tudo aquilo que comemos? Lê-se nessas interpretações: “sou percebida naquilo que tenho de pior, de mais vergonhoso”. Uma paciente uma vez colocou que a sensação de estar sendo olhada é tão forte, que às vezes vem mesmo quando ela está sozinha.
Quantas de nós não temos uma tendência a raciocinar em termos absolutos e extremos, e aí qualquer falha – comer algo que consideramos engordativo, por exemplo – é interpretada como total fracasso e perda de controle. Ou conseguimos o nosso intuito – um total controle de nossa fome e do nosso corpo – ou somos uma pessoa sem valor algum.
Muitas vezes há, também, uma valorização dos fracassos e desvalorização dos sucessos. Nossas conquistas são sempre insuficientes. Perceber a si como inadequado em domínios valorizados é traduzido em baixa auto-estima global e parece deixar o Eu “desprotegido” contra eventos estressantes.
Enfim... qual a nossa ilha pessoal?
Em que pensamentos, em que crenças disfuncionais estaríamos isolados?
Qual seria a nossa ponte para o continente?